SOBRE O CIÚME

    Todos os que me conhecem sabem, e até comentam, o amor que tenho pela natureza e pelos animais, de maneira especial pelos cães e gatos. Nas igrejas em que servi, eles sempre me acompanharam, de forma tão visível, que muitos me chamam de São Francisco. 
    É sabido o amor que os animais dedicam àqueles que os acolhem, mas também o é o ciúme que sentem em relação aos que eles amam. Lembro de situações em que testemunhei tanto o amor quanto o ciúme dos animais domésticos, e outros que me foram narradas. 
     Uma história de ciúme animal inusitada foi-me contada por uma amiga vizinha, de São Paulo, a Cida. É inusitada, pois o animal em questão é, não um cão ou um gato, mas um peixe. Contou-me a Cida que o peixe de seu marido, o Brito, não gostava dela e não se deixava alimentar por ela, indo para o lado oposto do aquário a cada vez que ela se aproximava. No entanto, ao som do carro do Brito, o peixe se alegrava, nadando em círculos pelo aquário e demonstrava alegria ainda maior quando seu dono se aproximava. Mas à Cida, sempre a ignorava, apesar de ser ela a ficar a maior parte do tempo com ele. 
    Meu querido amigo, o ex-bispo da Diocese de Nova Iguaçu, falecido na Véspera de Natal de 2019, D. Werner Siebenbrock, tinha um papagaio de estimação em sua casa. Quando cheguei a Nova Iguaçu, em 1999, algumas vezes cheguei a brincar com esse papagaio e afagar sua cabeça, achando muita graça quando ele cantava trechos de algumas músicas católicas, movimentando a cabeça para cima e para baixo, ou quando chamava D. Werner pelo nome. Um dia, o bispo deixou o seu escritório em minha companhia, com um braço sobre o meu ombro, passando próximo à ave. A partir desse dia, o papagaio tornou-se arisco em relação a mim, procurando sempre me atacar. Ao visitar D. Werner, eu sempre passava a largo pela ave, pois o papagaio esticava-se para bicar-me, até o dia em que, distraído e conversando com uma senhora, passei ao lado do pássaro e ele bicou-me com força o braço, que ficou dolorido por quase uma semana, embora não tenha sangrado. 
    Quando ainda vivia em São Paulo, fui morar, no início dos anos 90, em um condomínio fechado, constituído de sobrados semelhantes e geminados. Um dos vizinhos tinha um lindo gato branco que, confundindo as casas, constantemente entrava pela janela da cozinha e, ao amanhecer, ficava me olhando, à porta de meu quarto ou próximo à cama. Aos poucos, conquistei-o e ele passava mais tempo em minha casa do que na do vizinho. Eu podia pegá-lo no colo e acarinhá-lo; e ele até dormia comigo em algumas oportunidades. certa vez, deram-me uma gatinha de presente e eu acabei cuidando dela. Desde o momento em que o gato branco me viu com a gatinha, não mais pisou na minha casa e, quando fui tentar acarinhá-lo, não o permitiu, tornando-se agressivo. 
    Na igreja do Jardim Gláucia, em Belford Roxo, a primeira em que servi como pároco, após a ordenação presbiteral, cheguei a ter diversos cães, todos vira-latas, que foram acolhidos em momentos de enfermidades e que, ao sararem, permaneceram na casa. Ao deixar a paróquia, havia 7 cães e 2 gatos e vários pombos acima do aparelho de ar condicionado de meu quarto. Os cães conviviam bem, porém quando, eu me aproximava para brincar com eles, começavam a brigar violentamente. Isso voltou muitas vezes a acontecer, em outras casas e com outros cães que acolhi. 
    Em Tinguá, os cães se aproximavam da igreja, pois se sentiam acolhidos e amados. O povo presenciou várias vezes brigas durante a missa e orações, devido ao ciúme entre os cães, que, por sinal, nem meu eram. Tenho até hoje uma pequena cicatriz na mão direita devido a uma briga entre um casal de cães caramelo, que passaram a viver no jardim da casa paroquial, após terem sido cuidados de suas enfermidades. A cadela estava sentada em uma poltrona na varanda, na qual eu fazia minhas orações, quando eu me aproximei dela e o macho não gostou e atacou-a. Na tentativa de separá-los, um deles mordeu minha mão quando tentou morder o outro. 
    Estes poucos exemplos me ensinaram que os animais também são possessivos e ciumentos. Refletindo sobre esta constatação e à luz da Palavra de Deus, fui percebendo que o ciúme é sinal de uma animalidade e de uma inexistente ou baixa evolução espiritual. Não estou falando em reencarnação ou karma, estou refletindo sobre o crescimento no amor ao longo desta vida. Essa evolução ou crescimento no amor encontra nos Evangelhos a sua base. Quando conseguimos fazer ao outro o que desejamos para nós mesmos (cf. Mateus 7, 12; Mateus 22, 39; Lucas 6, 31; Tobias 4, 15; Romanos 13, 8; Gálatas 5, 14), estaremos crescendo no amor. Quando somos egoístas, possessivos e ciumentos, estamos longe da perfeição no amor. 
    Nós, seres humanos, somos todos animais, diferenciados dos demais pela nossa racionalidade e pela nossa alma imortal, que desenvolvem em nós o que chamamos de de espiritualidade. Tenho percebido o ciúme e a posse de um ser humano por outro, em nome de algo que acreditam ser amor, como falta de evolução espiritual e sinal de uma animalidade irracional de egocentrismo e individualismo extremos. A vida de inúmeros santos, que a Igreja nos apresenta como exemplo de discipulado de Jesus, nos ensinam como a santidade torna-se presente em suas vidas a partir do momento em que, superando suas vontades e seus egoísmos, passam a viver em função do bem do próximo mais necessitado. Antes da conversão, muitos demonstravam os mesmos pecados de cada um de nós, porém, quando encontram o verdadeiro amor em Jesus Cristo, isso transformou as suas relações com o outro. 
    Tudo, no universo, é criatura de Deus, como percebemos pelo texto etiológico e teológico do Livro do Gênesis. No entanto, o ser humano não apenas foi criado por Deus, mas o foi à Sua imagem e semelhança (Gênesis 1, 27). Cabe a nós, humanos, viver de forma que esse assemelhamento seja cada vez mais pleno, até nos tornarmos a imagem do próprio Cristo (cf. Colossenses 1, 15). 
    A Bíblia nos ensina que Deus é amor (cf. Primeira Carta de João 4, 8), portanto, nós, se quisermos ser cada vez mais a imagem de Deus, devemos ser amor. Jesus resumiu toda a Lei e os Profetas no mandamento do amor: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento (...). E amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Mateus 22, 37.39), citando o Livro do Êxodo (capítulo 20) e Livro dos Números (capítulo 19). Na Primeira Carta aos Coríntios (capítulo 13), o “hino ao amor” de Paulo apresenta o amor como sendo a base de tudo o que vivemos e a única coisa que devemos aspirar, pois o amor é eterno. 
    O verdadeiro amor gera, cria, doa-se. O mundo é o sinal visível do amor trinitário de Deus, que extrapola a Si mesmo. A nossa redenção é fruto do amor de Jesus por todos e por cada um de nós em particular, que dá a Sua própria vida em resgate do ser humano. 
    O amor verdadeiro é doação de si ao objeto amado, a ponto de aquele que ama querer o bem e a felicidade do amado, renunciando a si próprio, sem ciúme e sem possessividade. 

Pe. Nelson Ricardo Cândido dos Santos 
 2011 - revisão 2023