MEU CRISTO É POBRE, SUJO E MAL-CHEIROSO



            Durante a celebração do Dia dos Fiéis Defuntos, um dia após a Solenidade do Todos os Santos, no momento da homilia busquei estabelecer uma conexão entre as duas celebrações a partir do Sermão das Bem-Aventuranças (Mt 5,1-12), evangelho proclamado no Domingo, e o do Juízo Final (Mt 25, 31-46). Em relação às Bem-Aventuranças, entre outros aspectos, destaquei que uma das características ontológicas de Deus – além do amor e da misericórdia – é a felicidade, e que as nove Bem-Aventuranças são o rosto que todo ser humano deve buscar em seu assemelhamento ao Criador, são novas possibilidades de ser humano, de ser humanidade, um desejo de um modo novo de sermos seres humanos, o sonho de um mundo feito de paz, de sinceridade de justiça, de corações límpidos, puros, citando as palavras de Ermes Ronchi. Ao falar do Evangelho do Juízo Final, lembrei que não são apenas os grandes pecados que nos condenam, mas os pequenos e cotidianos, que nos afastam de Deus e, com isso, dos nossos irmãos mais necessitados. Jesus não condena apenas os grandes pecados – assassinatos, adultérios, corrupção, roubos, difamações e outros que atingem a vida do próximo –, mas vai muito além, condenando aqueles que vivem egoisticamente, não tendo compaixão do outro que tem fome, sede, frio, que está enfermo, preso ou é estrangeiro (como tantos refugiados que existem pelo mundo, fugindo de fome, violência, desemprego, perseguições políticas e religiosas).
Estava eu na homilia ainda quando entrou na igreja e sentou-se no primeiro banco um homem moreno, sujo e visivelmente alcoolizado. O rosto do homem não me era estranho; talvez o rosto de tantos alcoólatras com quem já tive contato. Enquanto eu falava, ele falava em voz alta palavras que eu não conseguia entender. Com dificuldade, conclui a homilia e sentei-me. Em situações como essas, é muito difícil, seja para o padre, seja para a assembléia, saber o que fazer. Mandá-lo calar-se? (cf. Mc 10,48 – Evangelho proclamado havia oito dias, no XXX Domingo TC B) ou impedi-lo de se aproximar? (cf. Mc 10, 13 – Evangelho de um mês atrás, XXVII Domingo TC B).
Após um breve silêncio, motivei as Preces da Assembléia. E o homem continuou a falar em alta voz, no entanto, nesse momento, percebi que ele, em ritmo mais lento do que as respostas da assembléia, também respondia às preces. Pensei, nesse momento, que, provavelmente, sem que eu conseguisse entender, durante a homilia ele estivesse clamando a Deus (o que, de fato, foi-me confirmado depois). Senti-me, já na homilia e mais ainda agora, que aquela situação colocava-me à prova em relação a todas as palavras de misericórdia e caridade que eu havia proferido não apenas naquela homilia, mas em tantas outras. Senti que algo precisava ser feito, mas eu não sabia o quê. Tive receio de me aproximar dele e ser rechaçado por aquele homem. Quando desci do presbitério para acolher a procissão com os dons, antes me aproximei do homem, sem saber ao certo o que fazer ou dizer. Um aperto de mão, quem sabe! E aconteceu o surpreendente: ELE abriu os braços e me abraçou. Eu que pensava em ser, quem sabe, o pai misericordioso a acolher o filho pródigo, senti-me o filho abraçado pelo pai. Surpresa maior ainda: ELE me disse: “Obrigado, meu querido!” Meu querido! Simples e profunda expressão de amor e de misericórdia. E hoje, mais surpreendentemente, um dia após esse episódio, eu descobri que, em Hebraico, o verbo “ter misericórdia” está conectado com outras palavras, como “querido” e “amado”. Meu querido, disse o homem. Eu pensei em ser misericordioso para com ele, porém mal sabia o quanto ele estava sendo misericordioso para comigo.Em seguida, o homem começou a chorar.
Um pequeno gesto, tímido, inseguro... e fez um homem chorar. Ele acolhido. Eu, representando a comunidade, igualmente acolhido. Lembrei-me de um versículo da Carta de São Paulo aos Hebreus, que li certa vez fixado na portaria de uma pousada no litoral de Santa Catarina: “não esqueçais a hospitalidade, pois, graças a ela, alguns, sem o saber, acolheram anjos” (Hb 13,2). Quem foi o anjo de quem? Creio que um foi um anjo para o outro, e ambos o fomos para a comunidade.
E a face daquele homem me acompanhou naquela noite, pois eu já a virá muitas vezes antes. Creio ser a face com que Cristo se mostra a mim. No dia em que eu partir desta vida e me encontrar na porta do céu – não sei se serei convidado a entrar –, tenho a certeza de que será esta a imagem de quem vai me receber para decidir o meu destino. Espero sempre reconhecê-lo quando se apresentar diante de mim, testando a minha caridade, não nas palavras, mas na ação concreta, pois “todas as vezes que o fizeste a um desses mais pequeninos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizeste” (Mt 25,40c). Uma certeza cresce dia a dia em mim: o meu Cristo é pobre, sujo e malcheiroso.




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