DESACRALIZAÇÃO DO OUTRO E DE DEUS

Quando Deus deu ao povo no deserto, durante o êxodo, as Dez Palavras a que chamamos de Dez Mandamentos, resumidamente ele ensinou que o outro é sagrado. O Outro Absoluto, que é o próprio Deus, a quem devemos amar em primeiro lugar; nossos pais, que devem ser honrados, pois foi através deles que viemos a este mundo; e o outro nosso irmão: tudo o que o outro é, é sagrado, intangível e devo respeitar - a vida do outro (não matarás), a fama do outro (não levantarás falso testemunho), a nossa união matrimonial com o outro (não cometerás adultério), o cônjuge do outro (não cobiçarás a mulher do próximo), e tudo aquilo que pertence ao outro (não roubarás; não cobiçar as coisas alheias). Séculos mais tarde, Jesus ensinou que toda a Lei e a Profecia se resume em "Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo" e "Faça ao outro o que queres que te façam). [cf. Êxodo 20, 1-17]

Falando sobre o Julgamento Final, o mesmo Senhor Jesus afirmou que Ele colocará diante de Si todas as nações (não apenas os cristãos) e os separará em dois grupos: de um lado os carneiros e de outro as ovelhas; e dirá às ovelhas: "vinde, benditas do meu Pai, para o céu, pois me destes comida quando estive com fome; e água, quando estive com sede; me vestistes quando eu estava nu; e foste me visitar quando estava na prisão ou doente". E as ovelhas dirão: "Quando Te fizemos isso, Senhor". E Ele lhes dirá: "toas as vezes que o fizestes ao teu irmão mais necessitado, foi a mim que o fizestes". E dirá ao outro grupo: "Ide, malditos, para o inferno, para o fogo preparado para Satanás e seus anjos, pois estive com fome, com, sede, nu, enfermo ou n a cadeia e não me servistes". E estes dirão: "Quando não o servimos?". Todas as vezes que não fizestes ao teu irmão mais necessitado, foi a mim que não o fizestes". [cf. Mateus 25,31-46].

O problema do mundo de hoje é que o outro não é sagrado para o ser humano. Tira-se a vida do outro por mesquinharias, por banalidades; adultera-se como se fosse uma conquista positiva; rouba-se, corrompe-se sem se preocupar com o outro. Quando o outro não é sagrado para nós, Deus também deixa de ser sagrado, pois só chegamos a Deus e O amamos, quando nos aproximamos do outro e o amamos, vendo-o não como inimigo, mas como irmão.

A começar pelas famílias, vivemos o desrespeito ao outro: como honrar pai e mãe se tantas vezes os pais e mães são opressores, violentos, irresponsáveis e inconsequentes? Quantas situações familiares já presenciei em minha vida, em que a criança é desrespeita, violentada e agredida das mais variadas formas? Lembro-me de certa vez, andando pela rua, em que ouvi uma mãe gritando com uma criança de cerca de 4 anos que não conseguia acompanhar os seus passos: “Maldita hora em que te pari! Nunca mais tive sossego!” Ou tantas as vezes em que ouvi pais dizendo inúmeras vezes aos seus filhos: “Inútil! Imprestável! Você não serve para nada”. Como ser uma pessoa com amor próprio se você cresce ouvindo isso. Cresce-se acreditando que de fato se é um inútil. E nós, que vemos adultos desocupados o dia todo, vivendo de doações das igrejas, ou moradores de rua, olhando seu presente, os julgamos: “Marmanjo inútil, safado, ladrão, drogado, bandido! Não ajudo! Se morrer, não fará falta ao mundo!”, sem nos preocuparmos em conhecer seu passado, com medo de nos aproximar, olhando-o como um monstro e não como um ser humano totalmente dilacerado em sua humanidade e dignidade. Um garoto de onze anos, catequizando, procurou-me um dia, pois estava triste. Perguntei-lhe a razão disso e ele respondeu-me: “É minha mãe... ela vive me chamando de ‘coisa ruim’... eu não sou ruim”. Soube que era, na escola, um aluno rebelde e, na catequese, igualmente rebelde. Como ser um ser humano equilibrado e integrado quando a própria mãe o coloca abaixo de sua humanidade. Ele não precisa de agressão, mas de amor, pois só o amor redime. Acompanhando crianças cujos pais perderam a guarda de seus filhos por violência doméstica ou uso de drogas, conheci crianças amorosas, porém marcadas pela dor e pela violência. Uma menina de 3 anos tinha de ter seus cabelos cortados curtos, pois, se estivessem compridos, ela os enrolava em volta do dedo e arrancava, deixando falhas no couro cabeludo, engolindo-os em seguida, tendo muitas vezes de ir a um Pronto Socorro para ser atendida e retirarem os cabelos de seu aparelho digestivo; quando não conseguia mais arrancar os cabelos, mesmo dormindo, arrancava pedaços de pele do rosto com as unhas. Que violência sofreu ela da parte dos pais para fazer isso consigo própria! Conheci um bebê que, com um ano de idade, não conseguia sequer virar-se na cama, tendo uma deficiência múltipla, física e mental, devido a uso de drogas pela mãe durante toda a gravidez. Com certeza, hoje Deus diz ao ser humano não apenas “Honra teu pai e tua mãe”, mas também “pai e mãe, honre teus filhos”. Uma mãe que engravidou muito jovem devido a um comportamento sexual degradante em bailes de determinado tipo de música, foi obrigada pela avó da criança a cuidar do filho e só sair após ter alimentado e deixado o filho limpo no berço. Quando estava pronta para sair, sua mãe lhe disse ela teria de trocar a fralda do bebê, que havia urinado. Revoltada, ela assassinou o bebê, arrancou-lhe o órgão genital, colocou o corpo em um saco e jogou-o no lixo. Lixo: era isso para ela o próprio filho. Como ter uma sociedade sadia com famílias destruídas pelo egoísmo e individualismo, cada um querendo fazer a própria vontade, sem preocupar-se com o outro?

Um pai de família foi, em um feriado, com a família a um local de lazer fora da cidade, tendo de passar por uma estrada de terra para lá chegar. Ao voltar, carros fazendo manobras para escapar dos inúmeros buracos, seu carro raspou o para-choque no para-choque de outro. O motorista do outro carro desceu gritando e assassinou o homem na frente da esposa e dos filhos. Lembro-me da criança de seis anos, que durante o roubo do carro em que estava, ficou preso pelo cinto de segurança e foi arrastada por quilômetros. Morte bárbara! Não sei se é verdade, mas anos depois li que o grupo que realizou o assalto, mais tarde realizou uma churrascada para comemorar o feito. Quantas pessoas, nos últimos anos, morreram por falta de estrutura ou atendimento médico nos hospitais públicos do Brasil devido aos bilhões e bilhões de reais que foram roubados pelos nossos governantes corruptos? E sem qualquer drama de consciência da parte deles. Muitos assassinos e traficantes, vindos das periferias miseráveis de nossas cidades, são frutos do ambiente miserável em que nasceram e cresceram. Mas e os corruptos que nasceram em cresceram em chamadas “famílias de bem”, sem terem passado necessidades materiais? Corromperam-se pelo sistema corrupto em que vivemos.

Sobre a corrupção, no livro-entrevista do Papa Francisco, “O Nome de Deus é Misericórdia” (Ed. Planeta, 2016), a partir da recordação que o jornalista Andrea Tornielli fez de uma homilia de Sua Santidade na Casa Santa Marta em que este disse “Pecadores, sim. Corruptos, não!”, explicou o Papa: “A corrupção é o pecado que, em vez de ser reconhecido como tal e de nos tornar humildes, é transformado em sistema, torna-se habito mental, um modo de viver. Não nos sentimos mais necessitados de perdão e de misericórdia, mas justificamos a nós mesmos e aos nossos comportamentos. Jesus diz aos seus discípulos: se alguém te ofende sete vezes ao dia e ste vezes volta a ti para pedir perdão, perdoa-lhe. O pecador arrependido, que depois cai e recai no pecado por causa da sua fraqueza, encontra novamente perdão, desde que se reconheça necessitado de misericórdia. O corrupto, ao contrário, é aquele que peca e finge ser cristão. E com sua vida dupla provoca escândalo. // O corrupto não reconhece a humildade, não se sente necessitado de ajuda, leva uma vida dupla. (...) Embora muitas vezes se identifique a corrupção com o pecado, na verdade são duas realidades distintas, apesar de interligadas. O pecado, sobretudo se reiterado, pode levar à corrupção, mas não quantitativamente – no sentido de que determinado número de pecados fazem um corrupto –, quando muito qualitativamente: criam-se hábitos que limitam a capacidade de amar e levam à autossuficiência. O corrupto se cansa de pedir perdão e acaba por acreditar que não deve pedir mais. // Não nos transformamos de repente em corruptos; existe um longo caminho de declínio, para o qual se desliza e que não se identifica simplesmente com uma ´serie de pecados. (...) O pecador, ao reconhecer-se como tal, de alguma maneira admite que aquilo a que aderiu, ou adere, é falso. O corrupto, por sua vez, esconde aquilo que considera o seu verdadeiro tesouro, aquilo que o torna escravo, e disfarça o seu vício com a boa educação, encontrando sempre um modo de salvar as aparências. // A corrupção não é um ato, mas uma condição, um estado pessoal e social, no qual a pessoa se habitua a viver. O corrupto está tão fechado e satisfeito em alimentar a sua autossuficiência que não se deixa questionar por nada nem por ninguém. Construiu uma autoestima que se baseia em atitudes fraudulentas: passa a vida buscando os atalhos do oportunismo, ao preço de sua própria dignidade e da dignidade dos outros. O corrupto tem sempre a cara de quem diz: “Não fui eu!”.” Recordo-me que, ao ler este livro-entrevista do Papa Francisco, nessa passagem particular, veio-me à mente, imediatamente, a figura e as afirmações de Eduardo Cunha. Mais recentemente, este retrato encaixou-se perfeitamente ao ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, Sergio Cabral e corja de corruptos.

Voltando ao tema inicial desta reflexão, o desrespeito ao próximo, a desacralização do outro humano, está levando a humanidade à violência, à corrupção, à opressão, a uma cultura de morte, que vai transformando a pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus (portanto, um ser de relações baseada no amor, na doação de si), em indivíduos (um ser que se centra em si mesmo, um egocêntrico que busca apenas o bem individual). A desacralização do próximo tem como conseqüência a desacralização do próprio Deus, uma vez que tudo o que fazemos ao próximo é a Deus que o fazemos. Não se amando e respeitando o próximo, não respeitaremos a Deus e nem o amaremos.

A atual cultura do acúmulo, do possuir, do imediatismo, do hedonismo tem nos afastado da nossa humanidade, da nossa pessoalidade, da dignidade dada por Deus a nós na Criação. O desrespeito ao próximo, a indiferença nossa em relação às dores do outro, o descompromisso com o nosso Batismo e com o discipulado de Jesus (ou obediência a Deus nas religiões não cristãs) desacraliza a nossa relação com Deus, que torna-se situacional e não ontológica: buscamos a Deus quando sozinhos não conseguimos atingir os nossos objetivos, mas, por ser uma busca egocêntrica, não nos torna filhos de Deus e menos ainda irmãos entre nós. “Vós sois todos irmãos” [Mateus 23,8] não é uma realidade na presente história humana, daí a escalada da violência. Superaremos a violência quando nos enxergarmos com irmãos e filhos do mesmo Deus e Pai, e vivermos a mais revolucionária oração em toda a história da humanidade, cristã ou não: o “Pai Nosso” [Mateus 6,9-13]. .

 

(24 de março de 2018 – noite

Véspera do Domingo de Ramos)

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