UMA LEMBRANÇA POÉTICA

 

Chove lá fora, a temperatura está amena, estou sozinho em casa e algumas lembranças vêm-me à mente enquanto cantarola ou declamo alguma poesia que está em minha memória. Lembrei-me de um poema que ainda lembro de cór, apesar de se passarem quase meio século desde que a decorei. 

Não tenho certeza quanto à data, mas creio ter sido em 1973, quando cursava a sétima série e tive como professor de Português um senho idoso que morava em uma travessa da rua em que minha família habitava, por onde geralmente eu passava quando ia ou, principalmente voltava da escola, uma vez que, de manhã cedo, meu pai levava a mim e ao meu irmão Celso de carro para a escola. Não me recordo se alguma vez soube qual o seu nome; ele era conhecido pelo seu sobrenome: professor Moreira. 

O professor Moreira, pelo que me recordo, tinha em sua casa uma edícula na qual ele dava aulas de reforço. Muitas vezes eu o encontrei na porta de sua casa, quando voltava da escola. Era muito simpático, atencioso, carinhoso, e embora tivesse mais de 50 anos de idade além da minha, tratava-me como se eu fosse adulto. Não me lembro sobre o que conversávamos quando eu o encontrava, mas a conversa sempre me fazia bem e deixava-me feliz.  

Quando foi meu professor, mais do que ensinar Gramática, ensinava a amar a Língua Portuguesa através da poesia (ao menos assim está em minha cabeça). Também não me recordo se ele dava algum tipo de prova ou avaliação escrita, mas nunca esqueci quando nos pediu que decorássemos um poema para declamar para ele como avaliação. Em minha casa, havia um livro de coletânea poética, Poesia Brasileira para a Infância, organizada por Cassiano Nunes e Mário da Silva Brito, o qual eu já havia lido algumas vezes. Neste livro, uma das poesias mais queridas por mim era O Pintinho Cego, de Olegário Mariano, que ao longo da vida procurei transformá-la em um conto. Naquela época, porém, para o exame, escolhi Deus, de Casimiro de Abreu. É impressionante como, após tantos anos, ainda me recordo desse poema e o sei inteiramente de cór. 

 

Eu me lembro! Eu me lembro! – Era pequeno 
E brincava na praia; o mar bramia, 
E, erguendo o dorso altivo, sacudia, 
A branca espuma para o céu sereno. 

E eu disse a minha mãe nesse momento: 
“Que dura orquestra! Que furor insano! 
Que pode haver de maior do que o oceano 
Ou que seja mais forte do que o vento?” 

Minha mãe a sorrir, olhou pros céus 
E respondeu: – Um ser que nós não vemos, 
É maior do que o mar que nós tememos, 
Mais forte que o tufão, meu filho, é Deus. 

 

Muito antes disso, desde que aprendi a escrever, sonhei em ser um escritor, mais do que um poeta, mas um escritor de prosas. Mas a poesia também estava em mim. Com sete ou oito anos, certo dia sentei-me à banqueta do piano de meu irmão mais velho e usando o instrumento como escrivaninha, apoiei um livro – Os Segredos de Taquara-póca, de Francisco Marins – e olhando para a sua capa colorida escrevia a minha primeira história, infelizmente perdida. Em 1968, escrevi duas histórias em prosa, que devo tê-las ainda guardadas em algum lugar. Mas foi neste ano que compus dois poemas, sendo um deles como letra de uma música que igualmente compus. Em meio ao contexto do nacionalismo, ambas as tinham tema patriótico. 

 

 

Foi José Bonifácio 

Quem incentivou 

A Dom Pedro Primeiro 

Que de Portugal nos livrou. 

 

A letra de uma canção era: 

 

Caxias, ó Caxias 

Você é herói nacional! 

Caxias, ó Caxias, 

Meu herói varonil! 

Você foi um grande homem, 

Valoroso e fiel, 

Caxias, ó Caxias, 

Meu herói sensacional. 

 

Tive vontade de mostrá-las à minha professora de então, dona Dulce, mas nesta época eu já era muito tímido, provavelmente devido a uma professora substituta que deu apenas uma aula, quando a professora titular faltou, não me recordando se no primeiro ou no segundo ano primário, porém é mais provável que tenha sido no segundo. Eu era esperto e conversador. No primeiro dia de aula no rimário, minha mãe não me levou à escola, mas pediu ao meu irmão mais velho que o fizesse, orientando-o a só se afastar de mim quando eu fosse chamado, No entanto, assim que chegamos à escola (Grupo Escolar do Bairro da Previdência), meu irmão levou-me à porta através da qual eu seria chamado, disse-me para ficar ali até ouvir meu nome. E foi embora. Lembro-me perfeitamente que fiquei sentado ao lado de uma senhora loira, que mantinha seu filho acomodado em suas pernas. Conversamos bastante. Se não me engano, o nome do garoto era Fernando (nunca estudei com ele), loiro como a mãe. Futuramente, soube onde moravam e que ela era advogada. Antes de entrar para a escola, minha mãe ensinara-me as primeiras letras. Certa vez, ainda no primeiro ano, minha professora, Diva, faltou e a minha turma foi levada para a sala ao lado, da professora Odete. Como eu era adiantado, ela pediu-me que olhasse as lições de seus alunos, dividindo com ela essa tarefa. Pois bem, como eu disse antes, minha professora Diva faltou e uma substituta foi dar aula em minha turma do primeiro ano. Ela estava escrevendo uma frase na lousa e, como eu conhecia tal frase, completei-a em voz alta. Ela voltou-se para mim com ódio estampado nos olhos e gritou: “Cale a boca! Eu não mandei você falar nada!” E eu calei... por mais de vinte anos. Somente quando fui trabalhar no comércio é que voltei a falar com estranhos ou em grupo. 

É incrível como uma palavra mal dita, gritada, dita com ódio, pode deixar traumas na vida de uma criança. E como uma presença carinhosa, como a do professor Moreira e de outros grandes professores que eu tive fica marcada em nossa alma para sempre. Não me recordo do rosto e nem do nome daquela infeliz professora substituta, porém, a memória de outros verdadeiros mestres ajudou a moldar a minha personalidade e muitas das escolhas que fiz ao longo da vida. 

 

 

 

 

Pe, Nelson Ricardo Cândido dos Santos 

Novembro de 2021 

 

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