DEUS NUNCA DEIXA DE SER PAI

  

A experiência de Inferno pela qual passei quando estive em coma por 40 dias devido à Covid mexeu profundamente comigo e fez-me rever muitos conceitos e posturas em minha vida, inclusive em relação ao meu ministério ordenado.  

Recordo-me, ainda com vividez, a angústia que me dominou quando comecei a voltar à vida e não tinha como falar sobre ela, pois a traqueostomia por que tive de passar me impedia de emitir qualquer som. Sequer eu conseguia escrever, pois havia perdido toda a minha massa muscular e era-me impossível me comunicar por escrito estando sem coordenação motora. Tentava fazer com que lessem em meus lábios o que eu procurava dizer, mas ninguém me entendia e os enfermeiros não tinham paciência para comigo. 

Finalmente, quando voltei a falar, pedi a presença de um padre junto a meu leito no CTI, pois tinha uma necessidade urgente de me confessar. Demorou alguns dias, mas um padre foi ao meu encontro. Contei a ele o que eu havia experienciado.  

Eu estivera em um estado de espírito no qual eu me sentia totalmente solitário, sem Deus e sem qualquer pessoa comigo. Imagens sucediam-se à minha frente em velocidade opressora e alucinante e eu não tinha como evitar. Lembro-me de haver gritado “Acorda! Acorda!”, porém eu não conseguia acordar, não conseguia sair daquele estado em que me encontrava. Eu estava vivendo um pesadelo do qual eu não conseguia acordar. Não há como descrever a situação desesperadora em que me encontrava. Eu não sei explicar tudo o que se apresentava à minha frente e o que significavam aquelas imagens. Apenas uma imagem, que apareceu em uma espécie de outdoor poderia estar relacionado a uma situação de pecado. Também me torturava a presença de livros que eu havia lido, em especial das inglesas irmãs Brönte. Eu disse a mim mesmo, naquele pesadelo, que jamais voltaria a ler livros que não fossem edificantes.  

Narrei tudo ao padre que me atendia em confissão e não me lembro se ele chegou a falar-me alguma coisa, mas sei que ele não soube explicar o que havia acontecido comigo. Sobre a minha narrativa, perguntei-lhe se o que eu havia vivenciado era o Inferno ou o Purgatório. Se aquilo fosse o Purgatório, ele seria um Inferno.  

Apenas quando voltei à casa paroquial, após 6 meses de ausência, foi que comecei a discernir que, de fato, eu fora ao Inferno. Na capela da casa paroquial, eu não conseguia orar e apenas conseguia dizer a Jesus que não permitisse que eu fosse para o Inferno, que ninguém poderia ir para o inferno. Como alguém criado à imagem e semelhança de Deus poderia passar a eternidade em solidão, sem Deus e sem companhia? Li que Santa Teresa D’Ávila, ao fazer a experiência de Inferno, ficou profundamente triste e Jesus o percebeu e perguntou-lhe porque estava tão triste. E a resposta dela foi exatamente o que escrevi acima. Impossível ser feliz com tantos indo para o Inferno. A certeza do que eu vivera veio-me quando assisti a um documentário, “Infernum”, no canal Lumine.tv. Um padre, no momento em que disse que o Inferno era ausência total de Deus, respondeu-me o que eu precisava saber. Eu, quando comecei a volta do coma, senti-me totalmente sem fé. Eu não acreditava mais em Deus e em nada mais relacionado à minha fé e ao meu ministério. Nem orar eu conseguia. As mais simples orações desapareciam de minha mente e boca em poucos instantes.  

A convivência com dezenas de queridos amigos que se revezaram dia e noite como meus acompanhantes tanto no quarto do hospital quanto na Catedral de Nova Iguaçu, onde permaneci por 2 meses me recuperando após ter alta do hospital e antes de retornar à paróquia na qual sirvo, fizeram-me reaver minha fé. Há, para com cada um, uma gratidão eterna, pois não há como pagar-lhes. 

Após 19 anos de Ordenação Presbiteral, tendo lido inúmeras vezes os Evangelhos, preparado tantas homilias, essa experiência tão terrível da Covid fez-me olhar para o próximo com mais misericórdia e compaixão. Há, sim, situações criadas por algumas pessoas que nos tiram do estado de graça que queremos ter, mas há sim um novo olhar para as pessoas. 

Uma passagem bíblica que eu proclamei a cada Unção dos Enfermos que ministrei ao longo dos anos ganhou um novo significado, abrindo-me a ovelhas que não fazem parte de meu redil. No Evangelho segundo Mateus, no capítulo 8, versículos 5 a 13, um Centurião, ou seja, um oficial romano que tem sob suas ordens cem soldados, vai ao encontro de Jesus pedi-lhe que cure o seu servo que se encontra paralisado. O centurião era um pagão aos olhos dos judeus e faz parte do governo opressor de Roma em relação a Israel. No entanto, quando esse romano procura Jesus, Ele imediatamente diz que vai à casa do centurião, que responde: “Eu não sou digno de que entres em minha casa, mas dize uma só palavra e ele ficará curado”. Jesus não negou a Sua graça a esse romano, mas atende-lhe o pedido. Como, sabendo que Jesus não excluiu os que O buscam, eu poderia negar-me a ir ao encontro dos que me procuram em suas dores?  Se a acolhida sempre fez parte do meu ministério, agora ainda mais! 

Porém, a passagem do Evangelho, que mais me tocou neste ano em que ainda estou me recuperando, encontra-se na parábola do rico e de Lázaro (Lucas 16, 19-31). Vou diretamente ao que interessa neste texto bíblico. Após a morte de Lázaro e do rico, aquele vai para o céu e este para o inferno. Em meio aos tormentos infernais, o rico, que em vida negara a Lázaro as migalhas que caíam de sua mesa, mendiga ao Pai-Abraão (imagem de Deus-Pai) que peça a Lázaro que lhe coloque na língua uma única gota de água para diminuir os seus sofrimentos. O Pai-Abraão responde ao rico: “Filho, em vida tiveste tudo e Lázaro nada”. Senti-me iluminado ao ler neste ano essa passagem tão conhecida, que várias vezes esteve presente em minhas homilias. O Pai-Abraão responde ao apelo do rico no Inferno iniciando a resposta com a palavra “filho”. Que emoção saber que mesmo no Inferno jamais deixaremos de ser filhos de Deus e ele será eternamente nosso Pai! E qual deve ser a dor no Coração de Deus ver tantos filhos Seus perdendo a vida eterna! 

Nossa Senhora, em Fátima, disse às crianças-videntes que deveriam rezar muito pelos pecadores, pois muitas almas vão para o inferno por não haver quem ore por elas. Na parábola do rico e de Lázaro, diz-se que há um abismo intransponível entre o Céu e o Inferno e que ninguém pode passar do Céu para o Inferno e nem deste para aquele. Sim, ninguém pode, mas e Deus? Ele é todo poderoso no amor e na misericórdia! 

Uma vez que Deus nunca deixa de ser Pai para os seus filhos, mesmo para aqueles que o renegam e vivem longe dele, que o matam em seus corações, como fizera o filho pródigo, desde que tornei à vida, tanto em minhas orações pessoais quanto na celebração das missas, rogo a Deus não apenas pelos pecadores e pelas almas do Purgatório, mas também pelas almas que estão no Inferno, para que nos resgate pela Sua infinita misericórdia.  

Muitos podem pensar que o que tenho orado seja uma verdadeira heresia, mas se o faço é por amor aos irmãos, mesmo os pecadores mais perversos, e por acreditar na Misericórdia do Pai para com seus filhos. Pode ser que minhas orações sejam em vão, mas isso eu deixo para Deus decidir. Da minha parte, prefiro pecar por amor do que pela omissão. 

 

Pe. Nelson Ricardo Cândido dos Santos 

22 de julho de 2022 

 

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