VER DEUS FACE A FACE

Recordo-me que, quando comecei a ler a Bíblia, o primeiro elemento teológico que chamou a minha atenção, antes mesmo de realizar qualquer estudo sistemático, foi o fato de Deus caminhar junto a Seu povo escolhido. Essa ideia verdadeiramente me encantou! Somente Aquele que É (= Javé - Êxodo 3,14), por ser o único e verdadeiro Deus, pode dignar-se a descer até nós para guiar os nossos passos no reencontro com Ele. Esta ação de Deus em favor de Seu povo encontrará a plenitude com a encarnação de Jesus, o Deus-Conosco, o Emanuel, o Filho de Deus. Vivendo como humano, experimentou radicalmente a nossa fragilidade humana, igual a nós em tudo, exceto no pecado, não por ser Deus (cf. a quênosis de Jesus: Carta aos Filipenses 2, 6-11), mas por amar, pois quem ama não peca (cf. Santo Agostinho: “Ama e faz o que quiseres. Se calares, calarás com amor; se gritares, gritarás com amor; se corrigires, corrigirás com amor; se perdoares, perdoarás com amor. Se tiveres o amor enraizado em ti, nenhuma coisa senão o amor serão os teus frutos”. Outro aspecto teológico, que desde o início do meu retorno à relação mais íntima com Deus, chamou-me a atenção foi em relação a ver a Face de Deus. No Antigo Testamento, era proibido ver a Face de Deus, pois, se alguém o fizesse, morreria. No Livro do Gênesis, Jacó tem uma experiência com Deus e luta com ele, vendo-o face a face: “Jacó deu a esse lugar o nome de Fanuel, dizendo: ‘Eu vi Deus face a face e continuei vivo” (Gênesis 32, 31). No Livro do Êxodo, ainda em seu início, quando Moisés tem a primeira experiência com Javé, Este lhe diz: “Eu sou o Deus de seus antepassados, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó” (Êxodo 3, 6b). Narra-se que ante esta revelação “Moisés cobriu o rosto, pois tinha medo de olhar para Deus” (Êxodo 3, 11c). No capítulo 33, vemos uma passagem significativa na qual “Moisés pediu a Javé: ‘Mostra-me a tua glória’. Javé respondeu: ‘Farei passar diante de você todo o meu esplendor e pronunciarei diante de você o meu nome: Javé. Terei piedade de quem eu quiser ter piedade, e terei compaixão de que eu quiser ter compaixão’. E acrescentou: ‘Você não poderá ver o meu rosto, porque ninguém pode vê-lo e continuar com vida’. E Javé disse ainda: ‘Eis aqui um lugar junto a mim: fique em cima da rocha. Quando a minha glória passar, eu colocarei você na fenda da rocha e o cobrirei com a palma da mão e me verás pelas costas. Minha face, porém, você não poderá ver’” (Êxodo 33, 18-22). Entretanto, no capítulo 12 do Livro dos Números, lemos que “Moisés era o homem mais humilde entre todos os homens da terra” (Números, 12, 3). E, logo a seguir, “... e Javé disse: ‘Ouçam o que eu vou lhes dizer: Quando entre vocês há um profeta, eu me apresento a ele em visão e falo com ele em sonhos. Não acontece assim com o meu servo Moisés, que é homem de confiança em toda a minha casa: com ele eu falo face a face, às claras e sem enigmas; e ele vê a figura de Javé” (Êxodo 33, 6-8) e “Javé falava com Moisés face a face, como um homem fala com um amigo” (Êxodo 33, 11). No capítulo 34 do mesmo livro, após a morte de Moisés, vemos a seguinte informação: “Em Israel nunca mais surgiu outro profeta como Moisés, a quem Javé conhecia face a face” (Êxodo, 34, 10). Se ver a Face de Deus significava a morte de que O visse, como entender o que acontecia com Moisés, que via Deus face a face e continuava a viver. Mais que um simples detalhe ou informação, é uma lição para nós cristãos, como deve ser também para os judeus, com os quais partilhamos o Antigo Testamento. Deixando-nos contemplar o Livro do Gênesis na passagem da Criação do mundo, lemos no capítulo 3 deste primeiro livro da Bíblia que “A serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que Javé Deus havia feito. Ela disse para a mulher: ‘É verdade que Deus disse que vocês não devem comer de nenhuma árvore do jardim?’ A mulher respondeu para a serpente: ‘Nós podemos comer dos frutos das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Vocês não comerão dele, nem o tocarão, do contrário vocês vão morrer’’. Então a serpente disse para a mulher: ‘De modo nenhum vocês morrerão. Mas Deus sabe que no dia em que vocês comerem o fruto, os olhos de vocês vão se abrir, e vocês se tornarão como deuses, conhecedores do bem e do mal’” (Gênesis 3, 1-5). Este episódio da Criação, visto tanto do ponto de vista teológico quanto existencial, nos mostra que o pecado, ao qual podemos chamar de original, pois a partir dele os demais vão surgindo, é a desobediência a Deus. Satanás, em forma de serpente, é enganador e malicioso, usando um raciocínio ardiloso ao qual a mulher, em um primeiro momento, não é atingida. Ele diz que Deus proibiu de comerem todos os frutos do jardim, mas ela responde que só não podem comer os frutos da árvore no centro do jardim, pois se o fizerem morrerão. Então, a serpente mente, dizendo que não morrerão, mas serão como Deus, saberão distinguir o bem e o mal. Desobedecendo a Deus e enganados por Satanás, mulher e homem comem do fruto. Até hoje, o ser humano pensa conhecer o que é bem e o que é mal. No entanto, somente aquele que ama é conhecedor dessa diferença. Deus é amor (Primeira Carta de São João 4, 8b), portanto, ontologicamente conhece essa diferença. O egocentrismo, que é o verdadeiro antônimo ao amor, por centrar-se no “eu” e não no “outro”, torna-se incapaz de discernir corretamente o que é bem e mal, certo e errado. Mesmo assim, o ser humano arvora-se capaz desse discernimento, daí todos os vícios, violências, desrespeitos, infidelidades, julgamentos, corrupção, mentiras, engodos e sinais de morte presentes em nosso meio. Somente aquele que se torna obediente à Palavra de Deus, discípulo de Deus, poderá discernir corretamente, pois baseará seu discernimento no amor. Quando Moisés é chamado por Javé para ser o instrumento divino para a libertação do povo de Israel cativo no Egito, ele precisará primeiramente aprender a obedecer ao Senhor. Somente após essa conversão, poderá olhar a Deus face a face. Na plenitude dos tempos, Deus enviou Seu Filho ao mundo para nos ensinar a senda do amor, o caminho da salvação. Jesus é a face humana de Deus. O Senhor dignou-se apresentar a Sua Face ao ser humano decaído pela desobediência e egoísmo através de Jesus Cristo. É sempre Deus quem nos chama à conversão! Jesus vai chamando, aos poucos, a cada um de nós e a todos a mudar a nossa visão do mundo, tão pervertida e corrompida, segundo o próprio Amor, que é Deus. Suas parábolas buscam mudar essa visão de mundo, mudando o nosso esquema mental simbólico, ou seja, a forma como vemos o nosso mundo. É a Face misericordiosa do Pai que Jesus nos apresenta. E Jesus nos chama a segui-lO, a trilhar o Seu percurso, a viver o Amor, a transformar o nosso coração, ensinando-nos a aspirar as coisas do Céu ainda nesta vida, para termos a verdadeira Vida ao termo desta. Quando, após cerca de três anos de vida pública, Jesus, antes de subir a Jerusalém, onde encontrará a morte, pergunta aos seus discípulos quem o povo diz que Ele é e, ante a resposta dos discípulos de que o povo o julga um dos profetas, pergunta aos apóstolos quem eles dizem ser o Mestre, após a resposta de Pedro, em nome dos outros, de que Jesus é o Filho de Deus, o Messias, o Santo de Deus, o Filho de Maria exalta Pedro, pois não foi um ser humano que revelou-lhe isso, mas o próprio Deus (cf. Marcos 8, 27-30; Mateus 16, 13-20; Lucas 9, 18-21). Em seguida, muda Sua pregação, centrando-se no anúncio de Sua Paixão e Ressurreição, anúncio esse que Pedro recusa (Marcos 8, 31-32; Mateus 16, 22). Este, que acabara de ser exaltado, é repreendido por Jesus, que lhe diz: “Sai da minha frente, Satanás, pois pensas como homem e não como Deus” (Marcos 8, 33b; Mateus 16, 23). ‘Sai da minha frente’, vem para trás de mim, percorra o meu caminho, siga os meus passos, torna-te discípulo, renuncie a ti mesmo e aos teus conceitos e preconceitos, centre a tua vida no outro, no bem comum, doe a tua vida pelo Reino de Deus. “Quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas quem perder a vida por causa de mim, vai ganhá-la” (cf. Marcos 8, 34-36; Mateus 16, 24-25; Lc 9, 23-25). Somente os que forem obedientes à Palavra de Deus, forem discípulos de Jesus, discípulos do Amor, chegarão um dia à Pátria Celeste, onde finalmente verão Deus face a face. Sob esta ótica, é compreensível que Javé ensine a Moisés a bênção que deve ser dada a todo o Seu povo, chamada de “bênção do livro dos Números” ou “bênção de Aarão”, ou “bênção de São Francisco” ou “bênção de Santa Clara”: “Javé falou a Moisés: ‘Diga a Aarão e a seus filhos: Vocês abençoarão os filhos de Israel assim: Javé o abençoe e guarde! Javé lhe mostre seu rosto brilhante e tenha piedade de você! Javé lhe mostre seu rosto e lhe conceda a paz! Assim eles invocarão o meu nome sobre os filhos de Israel, e eu os abençoarei’” (Números 6, 22-27). A maior graça que teremos nesta e na outra vida será ver Deus face a face! Pe. Nelson Ricardo Cândido dos Santos 28 de setembro de 2022

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