QUARESMA: TEMPO DE RECONCILIAÇÃO


A Igreja nos convida durante todo o ano a nos reconciliarmos com o Senhor, através do Sacramento da Penitência (Confissão), todas as vezes em que, pelos pecados decorrentes de nossa fragilidade humana, rompemos a Aliança com Deus, seja atingindo a nós mesmos, ao próximo ou ao Pai.
Há, no entanto, duas épocas no ano que somos convidados a refletir e a viver mais intensamente essa nossa reconciliação: o Advento, quando nos preparamos para o Natal do Senhor, e a Quaresma, que culmina no grande mistério e graça da Ressurreição de Jesus Cristo.
Porém, reconhecer-se pecador e fazer penitência sempre foi algo muito difícil para o cristão de qualquer época, e o é ainda mais hoje, quando o individualismo é tão forte, que muitas vezes não conseguimos sequer reconhecer-nos pecadores. Não se trata de ver pecado em tudo, impedindo o ser humano de realizar em plenitude a sua humanidade; ao contrário, trata-se de, em nossa época, devolver ao ser humano a sua consciência reta, a fim de que sua vida não seja vivida apenas em função de si mesmo e de seu prazer, mas em função de toda a humanidade e de sua plenificação, segundo o projeto do Reino de Deus.
A Igreja (que somos todos nós e não apenas a Instituição) deve viver, neste período da Quaresma, um processo de revisão de vida e de reconciliação – com Deus, com o próximo e cada um consigo próprio. Daí iniciar-se a Quaresma, na Quarta-feira de Cinzas, com a bela leitura do Evangelho segundo Mateus (Mt 6,1-6.16-18), que nos apresenta três ações ou práticas concretas que nos ajudam a experienciarmos a penitência, preparando-nos para a reconciliação: a esmola, a oração e o jejum.
A esmola deve ser um verdadeiro ato de desapego de nossa parte em relação aos bens materiais e ao nosso individualismo. Dar esmola não é dar aquilo que nos sobra ou a menor moeda de nossa carteira a fim de aliviarmos a nossa consciência. A verdadeira esmola é a partilha, com todo aquele que carece de algo, daquilo que possuímos. Pode ser dinheiro, pode ser roupa, pode ser alimento; mas também pode ser nosso tempo, nosso carinho, nosso amor. A nossa esmola pode ser dirigida a um mendigo na rua, a um órfão, a um idoso abandonado num asilo, a um doente no hospital; mas também pode ser dirigida a nossos amigos e parentes, esposa ou marido, pais ou filhos, aos quais, muitas vezes, não dedicamos como poderíamos ou deveríamos, o nosso tempo livre, nossa atenção, nossa ternura.
A oração deve ser aquele tempo em que paramos todas as nossas atividades diárias, nossas correrias cotidianas, para nos voltarmos a Deus, não apenas para pedir, mas, principalmente, para reconhê-Lo. A oração deve ser um momento em que nosso corpo relaxa das tensões do dia a dia e, voltados para o Senhor, deixamos que Ele nos diga o que devemos fazer. A oração, se feita com o coração e não apenas por obrigação, leva-nos, obrigatoriamente, a ações concretas em relação ao Reino. Com a oração somos levados a amar a Deus presente no próximo, a fugirmos das situações de pecado, a nos descentrarmos de nós mesmos, a viver mais intensamente a presença de nossos amigos e parentes. A oração, se bem feita, é uma verdadeira terapia que nos cura de grande parte de nossos males e traumas, libertando-nos para o amor.
O jejum, feito com interioridade e não meramente formal, é um sinal de fé e caminho de salvação para todo o nosso ser. Fazer jejum não é apenas deixar de comer, mas é sofrer em um dia o que milhões de pessoas sofrem todos os dias, sem que haja a esperança de, no dia seguinte, cessar aquele sofrimento, como acontece conosco: no dia seguinte ao jejum, nos alimentamos normalmente. Jejuar é colocar-se no lugar de todo aquele que está privado de alimento, dos meios econômicos, dos bens culturais e de tantas outras coisas importantes para o ser humano. Assim, podemos jejuar de diversas formas para nos unirmos às diferentes privações de nossos irmãos: podemos jejuar alimento em geral ou algum específico; jejuar água, refrigerantes ou outras bebidas; jejuar televisão, passeios e diversões; jejuar consumo de bens diversos; jejuar uma conversa com amigos, permanecendo em silêncio;... Mas o jejum não serve apenas para nos colocarmos nos lugar daquele que está privado de algo; é também fortalecer nossa vontade e nosso auto-controle. Nesse sentido, devemos jejuar tudo aquilo que impede que a minha liberdade seja plena: cigarro, bebida, sexo, droga, televisão, internet, fofoca, gula,...
Que o Espírito do Senhor guie nossos passos e nossas ações nessa Quaresma a fim de, reconciliados com Deus, sermos sinal de Seu Reino em meio a este mundo tão conturbado.

janeiro-fevereiro de 2002

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