Hoje
comecei a despedida de um amigo a quem a dor nos aproximou no ano passado... a
sua dor, e que faleceu neste dia. A morte, como quase sempre acontece, faz-nos
refletir sobre a vida, seja de quem partiu, seja a nossa ou do ser humano em
geral.
A
morte do Rudinei Peçanha, após longa enfermidade e uma intensa luta da parte
dele pela vida, chegou na manhã deste domingo, 16 de fevereiro de 2014. Quando
eu o conheci, em janeiro do ano passado, às vésperas de ser oficialmente
indicado para servir como pároco na Paróquia Nossa Senhora das Graças, em Parque Flora , Nova
Iguaçu, ele já estava enfermo, mas o seu estado físico parecia ser fruto de um
derrame. Só mais tarde soube que, além do derrame, o Rudinei tinha câncer.
Ao
longo de todo o ano acompanhei o seu sofrimento e o da família, especialmente o
de sua esposa Leila, de quem me aproximei mais, unidos pela mesma esperança de
cura do esposo. Presenciei a batalha incessante do Rudinei pela vida, sua força
de vontade e sua fé. Quantas vezes foi hospitalizado, retornou ao lar e
novamente foi para o hospital! A saúde diminuindo a cada dia, as marcas no
corpo cada dia mais visível, a imagem de um homem saudável dando lugar,
paulatinamente, a alguém cujo corpo estava se deteriorando, sem sinais de
melhora, apesar de toda a esperança. Quando o fui visitar na CTI do Hospital
Nossa Senhora de Fátima, mal o reconheci. Pedindo a Deus sempre pela sua vida e
recuperação, no entanto não vi perspectiva de melhora. Tantas foram as vezes que
imaginei que morreria logo, mas a força de vontade de viver o mantinha na
terra.
Vê-lo
se transformando pela doença, agradeci a Deus por minha mãe, falecida vitimada
pelo câncer aos 39 anos, há 44 anos atrás, não ter passado por esse sofrimento.
Mulher de grande beleza, vaidosa, seria muito difícil, talvez, ver-se em um
espelho e não se reconhecer. Embora com metástase pelo corpo, morreu em casa e
inesperadamente, na manhã do dia 31 de dezembro de 1969, após ter passado o dia
anterior preparando a festa de Reveillon e de aniversário de meu pai. Lembro-me
daquele dia como se fosse hoje, sendo acordado pela vizinha, dona Conceição,
que, após dar-me o café da manhã, levou-me à sua casa e deu-me a notícia. Eu,
com 10 para 11 anos, havia sido colocado na cama por minha mãe na noite
anterior, tendo recebido seu último beijo; ao acordar, ela já estava morta. A
sua beleza não se apagou com a morte. Recordo que foi sepultada com seu vestido
mais querido, de seda verde, com estampa floral.
Durante
a missa na Comunidade do Sagrado Coração de Jesus e Nossa Senhora da Glória,
sem que o corpo do Rudinei tivesse chegado para o velório, no momento da
homilia lembrei de alguns detalhes do discurso do escritor português José
Saramago, feito em Estocolmo, quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em
1998. Seu discurso iniciava falando do homem de maior sabedoria que ele
conhecera na vida e que era analfabeto: seu avô. E nesse discurso, José
Saramago fala do que lhe ensinou esse avô e a sua avó, inclusive a atitude de
ambos perante a morte que se aproximava.
É
verdadeira poesia em prosa: "... estando ela sentada, uma noite, à
porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores
e menores por cima de sua cabeça, tivesse dito estas palavras: 'O mundo é tão
bonito, e eu tenho tanta pena de morrer.' Não disse medo de morrer, disse pena
de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua
estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e
derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta
de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo, porque nela
viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem seus próprios filhos,
gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e
este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir
que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do quintal, uma por
uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a
ver"
Sinto que o Rudinei também achava a vida e o
mundo bonitos demais para deixá-los, daí ter lutado tanto para viver. Isso sem
contar o amor à família. Durante essa mesma missa, a partir de algumas palavras
da segunda leitura do 6o. Domingo do Tempo Comum, Ano A – “Mas
como está escrito, ‘o que Deus preparou para os que o amam é algo que os olhos
jamais viram nem os ouvidos ouviram nem coração algum jamais pressentiu’”
(1Cor 2,9), - imaginei o Rudinei fechando definitivamente seus olhos nesta vida
e abrindo-os na ressurreição, sem a dor da doença, sem a deformidade física que
a enfermidade lhe causou, sadio, forte, deparando-se com o Reino de Deus,
admirado com tanta beleza, uma beleza inimaginável para o ser humano e
pensando: “Se eu soubesse que aqui era tão lindo, teria vindo para cá antes”.
Outra imagem
que me veio à cabeça, com seu corpo presente na igreja, foi do seu encontro com
Jesus e Maria.
Tendo o
Rudinei, próximo ao Natal de 2013, sido transferido para uma apartamento no
hospital em que estava internado, sua esposa Leila pode passar o Natal com ele,
o que seria impossível na CTI. Após a missa das 20h00, na Matriz do Parque
Flora, levei comigo uma imagem do Menino Jesus na manjedoura, dado a mim pelas
Irmãs Clarissas, e dirigi-me ao hospital para levar o Recém-Nascido para o
casal. Quando entrei no quarto, anunciando que Jesus havia nascido, Rudinei e
Leila choraram de emoção. Tenho a imagem daquele homem debilitado, mas
conseguindo fazer-se entender com palavras, emocionado, várias vezes pegando o
Menino e o beijando. Que alegria ao coração do casal estar recebendo aquela
imagem tão pequenina, no entanto, tão significativa. A Leila disse-me que já
estava se preparando para dormir, triste por estar com o esposo naquele
hospital, não tendo conseguido participar da missa natalina. Entretanto, o
Recém-Nascido foi-lhes ao encontro. Jesus nasceu naquela noite no presépio
daquele hospital.
Hoje, já com o
corpo do Rudinei na igreja, falando à família e amigos seus que estava na
igreja, recordei esse momento. E disse: “Se naquele Natal no hospital a
pequenina imagem do Menino Jesus trouxe-lhe tanta alegria e paz, imagine que
maravilha deve ter sido o seu encontro real e definitivo com Jesus e com Maria,
na vida eterna!”
A nós que aqui
ficamos cabe-nos viver em fraternidade, da melhor maneira possível, sempre
iluminados pela Palavra de Deus, para um dia podermos nos reencontrar com os
nossos queridos falecidos e contemplar o
que os nossos olhos jamais viram e os nossos corações jamais pressentiram.
Nenhum comentário:
Postar um comentário