Algumas vezes vêm-me à memória imagens e lembranças de minha infância ainda incipiente, porém com clareza e detalhes impressionantes, que espantam até meus irmãos mais velhos, deixando-os admirados.
Uma recordação um tanto adormecida que me acompanhou esporadicamente durante anos foi a de uma noite em que meus pais, com grande alegria, nos comunicaram, a mim e aos meus irmãos, que mamãe estava grávida. Porém, nunca mais tocou-se nesse assunto, que a mim parecia mais um sonho do que um fato real. Muitas décadas se passaram e, certa vez, em meu aniversário (não me recordo qual, mas por volta dos 35 anos), reuni meus irmãos, cunhadas e duas tias em minha casa, para celebrar. Ficamos horas em minha casa comemorando e conversando. Naturalmente, reunindo todos em uma rara oportunidade, já que cada um tinha as suas ocupações cotidianas, passamos a recordar fatos da nossa infância. A determinada altura da conversa, levei todos ao andar de cima, à minha biblioteca, onde havia muitos álbuns de fotografia, alguns que eu herdara da minha falecida madrinha e outros que eu organizara ao longo dos anos. Não me recordo como surgiu o assunto, mas meu irmão mais velho comentou de uma gravidez de minha mãe, que não chegou a seu final, devido a um aborto (não sei dizer se espontâneo ou provocado). Nessa época, minha mãe já fazia tratamento contra o câncer que a matou ainda jovem, aos 39 anos. Disse, meu irmão, que se tratava de uma menina. Uma menina! Um dos sonhos de meu pai era ter uma filha. Aquela lembrança adormecida em minha memória não era um sonho, mas uma realidade!
Hoje, chegou-me à consciência uma outra recordação que deixou marcas em minha vida por muitos anos. É esta que passo a relatar agora.
Meu pai era proprietário de uma pequena empresa de geladeiras e balcões frigoríficos para comércio. Era muito comum, aos domingos, nós, filhos, acompanharmos meu pai a diversos pontos periféricos da cidade de São Paulo, a fim de receber os pagamentos referentes à venda de seus produtos industriais. Geralmente, os locais aos quais íamos eram muito pobres. Durante a semana, papai trabalhava em sua empresa e, à noite, sempre contava a mamãe e a nós o que havia acontecido de especial, diferente.
Certa noite, falou-nos que havia um senhor muito pobre e que de tempos em tempos passava em sua loja e ficava conversando. Este senhor tinha um filho mais velho que nascera com deficiência física e não podia andar. Seu sonho era ter um acordeão. Como meu irmão mais velho, que tinha um talento especial para a música, tinha, além de um piano e de uma guitarra elétrica, um acordeão que não usava há muito tempo, meu pai perguntou-lhe se ele não gostaria de doar para aquele senhor. Meu irmão concordou e meu pai levou o instrumento musical para sua empresa.
Quando o homem passou pela loja de meu pai e recebeu o acordeão, contou-nos meu pai que ficara felicíssimo e que havia convidado “a patroa e os moleques” para visitá-lo e conhecer sua família. E em um domingo fomos todos, inclusive minha mãe, para a visita. Mas o que vimos foi além de qualquer expectativa. Narro aquilo que está em minha memória. A casa era extremamente pobre e viviam na casa, junto com o homem e sua esposa, não apenas aquele filho mais velho, mas mais de trinta crianças e jovens com deficiência mental. Era comum, no passado, os bebês enjeitados por serem indesejados ou portadores de deficiências, serem colocados na “roda” de mosteiros de freiras, que acolhiam tais crianças e delas cuidavam. Neste caso, o casal não rejeitou o filho deficiente, mas o acolheu com amor. Tal fato foi passando de boca em boca. Um dia, um bebê com necessidades especiais foi colocado na porta da casa do casal, e este o acolheu. E assim, ao longo dos anos, foram chegando mais e mais.
Lembro-me de um deles, pois deixou-me traumatizado por muitos anos, mais de vinte anos.
Devia ter a minha idade – dois ou três anos –, era comprido e magro, vestido apenas com uma fralda de pano, estando em pé no berço, segurando na grade e pulando de alegria. Em seu rosto, destacava-se um imenso sorriso escancarado, típico de pessoas que, à época, eram chamadas de “retardadas”. Não fui apenas eu que fiquei escandalizado com a situação daquela miserável e atípica família. Não me lembro das palavras que minha mãe disse ao entrar no carro, quando estávamos indo embora, mas ela estava horrorizada com tal situação.
A imagem daquele menino até hoje está em minha mente.
Esta triste experiência, forte demais para uma criança como eu, ainda tão pequena, deixou-me com um trauma, que me impediu durante anos de me aproximar de pessoas com deficiência mental. E assim foi, até que...
Já com meus vinte e poucos anos, fui convidado por uma colega da empresa em que eu estava trabalhando para ir à sua casa em um sábado à noite, para a festa de seu aniversário. Aceitei o convite, porém, ao chegar à sua casa, percebi que não havia nenhum outro colega que eu conhecesse. Sendo extremamente tímido, sentei-me no sofá, cercado por desconhecidos, sem conversar com ninguém, pois a timidez me impedia de fazê-lo.
A certa altura da festa, chegou uma família, cuja filha, de aparentemente seis anos, era portadora de Síndrome de Down. Entrou na sala e começou a abraçar e beijar cada um dos presentes, vindo em minha direção. Quando me dei conta do que poderia acontecer, comecei a rezar e a pedir a Deus para que aquela menina passasse direto por mim, sem tocar-me. Mas não foi o que aconteceu. Quando chegou à minha frente, como havia feito com os outros convidados, a menina “mongoloide” curvou-se para me abraçar. Eu, ainda sentado no sofá, inclinei-me para a frente, deixando-a me abraçar. O abraço deve ter demorado pouquíssimos segundos, mas naquele momento pareceu-me uma eternidade. Eu não a abracei, apenas deixei que ela me abraçasse. Mas... como em um filme em câmera lenta, meus braços foram se movimentando e retribuíram aquele abraço e o beijo que recebi na face. Segundos... muito poucos segundos... infinitos segundos... Mas curaram duas décadas de trauma!
Uma criança deixou-me um trauma. Uma criança curou-me.
O que antes eu evitava, agora me aproxima!
Livre!
Nelson Ricardo Cândido dos Santos
24/07/2024 - madrugada
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